terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Fragmento de “O Exército Vermelho”


O exército vermelho pinta-me as paredes descascadas que o Sol roeu, reveste-me enverniza-me protege-me da fuligem, do shrapnel que intraduzo, do horizonte de onde as nuvens me repartem em quatro e pedem que de quatro lhes uive, mas só tenho uivos para o exército vermelho, sou fiel.
O exército vermelho rega-me as flores que plantara, mas a isso dão o nome de orvalho.
O exército vermelho planta flores vermelhas no meu canteiro a cada manhã. As flores de ontem já não servem mais: murchas nas pontas das pétalas, tocam impudorosamente os poros do solo de Walter Solon e fazem alavancas para que indesejados parasitas me adentrem o bojo e roubem o néctar.
Às fileiras do exército vermelho incorporam-se os enxames e agora vejo que ele ataca as ameixas que deixei de oferenda na porta de casa. As minhas oferendas são leves como um pecado de infância: conformam-se de gizes, compreendem antros loiros de prostitutas ucranianas da Eurocopa, elegem-se aos poucos, têm sabor de lugar nenhum (estádios periféricos em antigos estados satélites), ordenando os loucos conforme as loucuras de cada um, pois benévolo.
O exército vermelho me leva em caravanas férreas até os prados siberianos onde me deleito ao encontrar em iídiche as inscrições num teatro em que se encena o Dibuk mas não há Dibuk, não há salmos, não Amélias, não ameixas, não amaros, nada de copos de leite ou café na cozinha laranja, é mesmo um cinema pornô o que isso se tornou, (sequer uma leitura dramática) e eu me recuso a bater punheta, por respeito ao espírito de Deus que talvez ainda ronde, que talvez ainda paire.
Demorei-me observando as belas barbas dos belos gajos do exército vermelho, e decidi crescer uma igual.
Leio em voz alta, leito em que não deito, horas em que oro à lua, oro a Hórus, oro há horas, arestas por onde passo, arestas em que te afago, são suas as arestas em que durmo, coberto pela noite, manto ancestral do fim da história.
Cordões que entredeixam, eras que já passaram, ritmo do passo que já era, promessas que fustigo, alguém me as acorde, alguém me as perdoe, alguém me olhe o olho e tente entender o que se passa nas planícies siberianas de redentor, de amável, de humano, de lindo, de belo, de honorável, de merecedor de nossas mais altas cerimônias e oferendas.
O exército vermelho me liberta mastigando o arame farpado como se fossem javalis num desenho animado que eu nunca assisti.
Que mal pode fazer um arquipélago?
Palavra das mais belas.
O exército vermelho me agasalha em pele de mamute.
Incorpora-me a suas fileiras, dá-me alimentos e uma espingarda, ensina-me o ABC da guerra, em cirílico, hebraico, gótico e os alfabetos secretos das gerações que se perderam, dos estupros nas vilas nas pilhagens das guerras, estou pronto.
Expansão pelos continentes são todos ilhas.
Nós não somos ilhas.
Creio no arquipélago.

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